terça-feira, 5 de maio de 2020

Análise Psicológica, Mitológica e Arquetípica do Filme "O Poço"


Atenção! Contém muitos Spoilers
Recomendo ver o filme antes e esta análise depois.


Vamos fazer através destas breves reflexões uma análise Psicológica do filme O Poço, seus simbolismos e lições. Pretendemos aqui ir um pouco além da crítica que normalmente se faz, da estruturação do Poço em camadas sociais, no entanto sem abrir mão dela.

Existe uma história que vem à mente imediatamente quando assistimos o filme. É aquela que diz assim: Era uma vez, no céu e no inferno, um grupo de pessoas, cada uma delas tinha uma grande colher e havia um caldeirão imenso com uma deliciosa sopa. Ainda que o cenário fosse o mesmo, a diferença é que, no céu, as pessoas alimentavam umas às outras com suas grandes colheres, enquanto que no inferno as pessoas, somente pensando em si, tentavam de toda forma tirar vantagem e evitar o ganho dos companheiros de cela. Assim, tentavam comer com suas colheres mas derramavam a sopa, se queimavam, estragavam, e todos passavam fome, enquanto no céu todos estavam nutridos de sopa e de afeto.

Vamos fazer referência aos personagens principais com suas imagens, não mencionando eventuais nomes que tenham aparecido no filme. Assim, vamos chamar de O Velho, O Quixote, A Mãe e A Menina de Olhos Puxados do fundo do Poço, a qual chamarei, inferência minha, de Esperança. 



O Velho, por exemplo, representa uma versão antiga de deus, uma divindade que só se saciava com sangue, a semelhança de Wotan e do Fauno, deuses considerados pagãos que tinham o dom da ordenação cósmica mas não se preocupavam com a moralidade. Assim como os deuses gregos, que se diferenciavam dos homens como sendo imortais, e não como moralmente superiores, vivendo as mesmas pathos, as mesmas paixões dos humanos. Assim, nosso Velho do bombástico meme do Óbvio, ora aparece como Saturno ou Zeus, ora representa Dionísio, o aclamado deus da crítica e da dúvida nietzcheana.

O nosso representante do Arquétipo do Herói leva consigo para sua iniciação no Poço o icônico livro Dom Quixote, o cavaleiro de escudo brilhante que lutava com moinhos de vento, representando as utopias e os sonhos impossíveis. Podemos aqui fazer uma primeira comparação de opostos nos arquétipos de Jung: Puer e Senex, o Velho e o Iniciante ou iniciado. Assim, chamaremos nosso Heróis de Quixote. Percebemos que ele apresenta primeiramente uma motivação egoística, deixar de fumar, obter um certificado, mas depois ele se engaja na transformação completa da lógica de ilusões do poço.

Vamos agora nos referir ao próprio Poço, símbolo arquetípico muito interessante. É a torre em que habita a princesa enclausurada, é o calabouço no fundo do castelo. Quando caímos em depressão sempre se fala, cheguei ao fundo do Poço, mas no Poço haverá fundo? 132? 200? 250 níveis? O Poço é a caverna de Platão, é o Samsara, mundo das formas e representações ilusórias, mundo prisão de provas e espiações em imagens mais modernas, o Vale de Lágrimas da cristandade. O Poço é o Mundo da matéria, governado por uma administração cega. Se os recursos fosse bem distribuídos, ora, haveria para todos. Mas quem vai deixar de estocar seu álcool em gel e seu papel higiênico em tempos de pandemia no qual escrevo, não é mesmo? A imagem de cair no Poço remete a muitos mitos, vamos só mencionar o mito moderno de Alice, a heroína que desce pela toca do coelho. 

O poço tem 333 níveis habitados, no entanto eles descem até mais fundo, o que me leva a referir que o nível 333 é o meio do poço. O final fica no 666. Não é Óbvio? Em vários momentos nosso personagem velho trás elementos do Trickster ou Mercúrio, divindade pagã que fazia travessuras e representa a animalidade no homem, a semelhança dos contos do Saci em terras brasileiras ou dos doendes e gnomos dos gringos. Doces ou Travessuras? A Panacota, um doce, óbvio.

Para os antigos Deus caía sobre a Terra na forma de Maná, e nos alimentávamos diretamente de seu corpo na travessia dos Hebreus pelo deserto, aliás o Poço é também o deserto. Este deus provedor é substituído na nova aliança por um deus que se manifesta nos pobres, nas crianças, nos doentes. Todo aquele que dá de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, vestir a quem tem frio, é a mim que o faz. Jesus, o Mestre Jedi da galiléia, faz com que o pão que cai dos céus se trasmute no seu corpo e vire alimento da alma, que encarna nos pobres e nas minorias, na criança que está no fundo do poço.

A criança, uma linda menina de olhos orientais, é a garota vietnamita da foto histórica, com sua pele queimada pelas bombas químicas que representam o começo de uma nova era da humanidade. Tema também mitológico, a transição da era de Saturno, o velho, patriarca, para a Criança Oriental e mulher, o feminino sagrado que está nascendo e regerá a humanidade na chamada era de aquário. 

A mensagem passa do pão, do maná, do deus provedor, para a criança, que representa o despertar de um olho oriental para quem está lá em cima, no topo do mundo ocidental, no nível zero do poço. Sua mãe, quando chamamos por ela e a ajudamos a alimentar a criança, se transforma naquela que roga por nós, e a nosso auxílio intercede nos momentos mais difíceis. Temos aqui mais um par arquetípico da mãe e da criança divina. A mulher entrou só no poço, mas surgiu uma criança, ela é filha do sofrimento desta mãe? Como a imagem da Lama que faz surgir a mais bela Flor de Lótus. A criança agora é a mensagem, ela é a Esperança. Será que ela vai conseguir? Saturno e seu filho, seu iniciado, ensanguentado como na representação de Mel Gibson, torcem por ela.



Hoje temos a notícia de que o vírus, pandemia mundial, já matou mais do que o Vietnã. O egoísmo assombra nossas possibilidades de sobrevivência. Heróis dão a vida para cuidar dos outros, ou se dão a muitas perdas para cuidar dos seus. De toda esta lama, esperançamos, surja um novo lótus que seja para nós uma mensagem. Tem muita coisa fervilhando no inconsciente coletivo da humanidade...





Vamos agora trazer breves notas sobre as estruturas psicológicas e os personagens. As estruturas é um tema na Psicanálise de Freud. Diante de um sofrimento ou do sofrimento, da angústia, aquilo que Lacan chamava de O Real, formam-se as estruturas neurótica, psicótica e perversa.



O velho representa a perversão. Diante da ausência de sentido ele pensa apenas nele mesmo, renega a lei e o pacto social. Projeta nos outros dizendo que os outros vão estragar a comida ou nela excretar, e por isso ele pode fazer também, afinal, fizeram com ele. O psicopata ou sociopata são exemplos extremos, como aqueles que estão nos níveis mais profundos estuprando, matando, esquartejando, queimando os índios, afinal, o que importa é o meu prazer. Como na figura do Dexter, psicopata que só mata psicopatas, temos uma renegação da lei em favorecimento do id, instancia onde habitam as pulsões e os desejos.



O Quixote representa por sua vez uma estruturação Psicótica. Assombrado pelos moinhos de vento, após as mortes do velho e da dona do cachorro, ele faz o ritual sacrificial de incorporação da carne, como apontado no livro Totem e Tabu, de Freud, onde os filhos sacrificam o pai e com isso tem que conviver com a culpa do assassinato. Ele tem várias alucinações com as vozes de sua cabeça que o assombram até que aceita, assim como Jonas, mergulhar nas profundezas do Poço para levar A Mensagem. O Psicótico recusa o desejo (de comer por exemplo) e sucumbe diante da culpa, mas pode transitar para uma borda um pouco mais neurótica, ao tentar refazer um pacto com a dimensão do desejo.



A nossa amiga dona do cachorro representa o pacto do neurótico. Ela sabe, já trabalhou para o sistema, mas em busca de dar um sentido para sua finitude resolver entrar no poço e ajudar aquelas almas perdidas na escuridão, então ela tenta enunciar as regras do pacto social, sem sucesso. Afinal, ela sabe como todos deveriam ser para a sociedade funcionar. Então, como dizia Lacan, cria o seu mito individual do neurótico e nele se isola para fugir da realidade dura e sem sentido do Poço.



Outra figura que representa o Neurótico é o homem negro que ajuda Quixote, hora ele aparece quase como um pregador mas buscando sua salvação individual, horas encarna a figura de um líder que conduz sua voz ativa e agressiva para que os recursos sejam melhores distribuídos no poço. Terá ele ficado satisfeito com seu papel nesta intrincada trama cósmica? O Neurótico sempre criará novas defesas para desviar a visão clara da luz que irradia e queima os olhos.



Não concluindo mas tendo que terminar, falaremos do tema da Sublimação de Freud, ou função transcendente de Jung, função criativa da Psique. Haverá futuro para nossa ilusão? A função criativa se apresenta primeiro como um livro, o qual depois não servirá para nada, e finalmente virará forro para o estômago vazio e desesperado. As histórias que são contadas e se contradizem nos vários níveis do Poço. A Luz que brilha quando Quixote e a Esperança estão no fundo do fundo do Poço. A figura de um professor negro em uma cadeira de rodas, um Luther King que perdeu seus movimentos e manca, ele é o psicólogo do grupo, sentado em sua cadeira servindo de porta voz às incursões da Mensagem, o Significante que vem da dimensão do inconsciente e que deseja resgatar o Equilíbrio da Força. E você, qual seu time? Não há futuro de nossa ilusão, acredita no Crepúsculo dos Ídolos, ou joga no time dos poetas,dos delírios utópicos, dos vagabundos, dos que ousam sonhar que a Esperança vai conseguir atravessar o Poço e que sua Mensagem será ouvida? Fico à disposição para receber e trocar reflexões.

Uma amiga sugere colocar indicação de leitura para quem quer mais reflexões simbólicas e mitológicas. Indico o homem e seus símbolos de Jung, e o poder do mito de Joseph Campbell, ele também está como video no Youtube. De Psicanálise recomendo o Fundamentos de Psicanálise de Freud a Lacan, de Marco Antonio Coutinho Jorge, e A Reinvenção da Intimidade, de Christian Dunker.

Recomendo também no meu YouTube a playlist Leituras em Psicanálise e Psicologia Analítica: Freud, Lacan, Jung. Segue o link:

https://www.youtube.com/playlist?list=PLKQTT6Hd8z-Ct2U7PMIIQkmFMX2TBZGD7



Att, Pedro Possidonio
Psicólogo e Terapeuta
Atendimento presencial e online
WhatsApp (85) 99688.8876

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