sexta-feira, 8 de maio de 2020

O mal entendido

O mal entendido é um conceito fundamental para Lacan. Ele diz que está no centro da comunicação humana. Isto ocorre porque, naquilo que dizemos, existem muitas possibilidades de interpretações, e cada um interpreta conforme sua história, suas vivências, seus significados. Por isso, também, quando dizemos, o fazemos com um sentido e, às vezes, a interpretação do outro vem num completo outro sentido. Por isso é preciso cuidar das relações, é preciso, escuta, presença.




Sempre tem algo de vazio e aberto a interpretações. Parte do treinamento de ser analista é aprender a perceber isso nos analisandos, pacientes e clientes. um treino de ouvir isso no que os outros falam. Inclusive é possível dizer que, quando o cliente está em sessão, não é exatamente ele quem fala, pois quem fala muitas vezes é o Inconsciente, se manisfestando nos atos falhos, lapsos, erros, chistes, esquecimentos, duplos sentidos, mal entendidos. Então ficamos muito muito atentos a essas questões de entrelinhas, entre-ditos , menções que nem mesmo a pessoa se dá conta, um escuta com uma atenção diferenciada a nosso próprio Inconsciente, treinado, a perceber o que chega naquilo que o analisando fala, pois nas entrelinhas o Sujeito do Inconsciente fala, se manifesta, e é necessário ser ouvido para se tornar consciente.



A base do conhecimento de nós mesmos, que é um conhecer ao Inconsciente, é que nós vivenciamos um desconhecimento essencial de nós mesmos. Nós não sabemos que somos. Isso nos leva a questão da verdade ou mentira em terapia, bem como na vida. Claro que ninguém diz totalmente a verdade o tempo todo, e alguém q diga "Eu só digo a verdade", essa frase já é uma grande mentira, já é uma demonstração de inconsciência. Isto é diferente da mentira intencional, para manipular. É uma mentira do ser que não se percebe, pois mentimos principalmente pra nós mesmos , não sabemos quem somos totalmente. Existe dentro da dimensão do Inconsciente uma coisa informe, amorfa, em nós que desconhecemos, Freud chegou a usar o termo Infamiliar (das Unheimlich).


Toda essa discussão me lembra a música de Chico Buarque O que será (À flor da Terra). Convido você a escutar ela com essa percepção agora pra perceber, como ela pode também falar disso que estamos discutindo. Segue a letra/poesia:


O que será que será
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurrando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças, anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos
Que estão falando alto pelos botecos
Que gritam nos mercados, que com certeza
Está na natureza, será que será
O que não tem certeza, nem nunca terá
O que não tem conserto, nem nunca terá
O que não tem tamanho
O que será que será
Que vive nas idéias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia-a-dia das meretrizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
Em todos os sentidos, será que será
O que não tem decência, nem nunca terá
O que não tem censura, nem nunca terá
O que não faz sentido
O que será que será
Que todos os avisos não vão evitar
Porque todos os risos vão desafiar
Porque todos os sinos irão repicar
Porque todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar
E o mesmo Padre Eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno, vai abençoar
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo

Podemos enunciar muitas teorias pra o que é que ele estáá falando na metáfora da música. Mas em momento nenhum se fecha, porque o nosso ser é assim, é aberto, é sem sentido final (o que é diferente de dizer que não tem sentido), e essa é uma das maiores fontes do nosso sofrimento. O trauma do Real, ou a angústia do Real. Viver, em si mesmo, é uma forte de traumatismo. Daí buscamos preencher esse furo com o falar, o simbólico. E, na dimensão do simbólico, sempre temos abertura para novos significados, daí que a linguagem do ser humano é criativa, aberta.




Diferente de um animal, que já nasce pronto, o ser humano é o único na natureza que precisa fazer-se, se descobrir e se realizar. O gato ao nascer trás em si toda sua 'gaticidade'. Já o ser humano dever tornar-se humano. 

A dimensão instintiva do gato nasce completa, no ser humano, esta  dimensão apresenta um furo. Esta imagem inconsciente dos instintos é para Lacan a dimensão do Imaginário, repertório pré simbólico ligado à cadeia evolutiva do ser humano. O furo, a ausência de sentido no imaginário do humano é a dimensão do real.

Para preencher o furo no imaginário é que existe o simbólico, o que se dá por meio da linguagem. Coutinho Jorge vai completar essa lição dizendo que tudo o que é do ser humano está mergulhado na linguagem. Lacan diz nos escritos que o sujeito humano nasce na linguagem. Mesmo assim, em tudo que se fala há o atravessar do real, a falta, o vazio impossível de ser fechado num significado último.

Para mais reflexões lacanianas sugerimos os Livros Fundamentos de Psicanálise de Marco Antonio Coutinho Jorge e o livro Por quê Lacan, de Christian Dunker. Sugerimos o canal deste também no Youtube. Para quem prefere os vídeos, fizemos também uma playlist em nosso canal chamada Melhores Reflexões em Psicanálise e Cultura. Segue o link: Clique aqui.



Att, Pedro Possidonio
Psicólogo e Terapeuta
Atendimento presencial e online
WhatsApp (85) 99688.8876

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